Alfabetizar uma criança é, provavelmente, um dos maiores desafios e alegrias de quem trabalha com educação. Mas como alfabetizar crianças com TEA – transtorno do Espectro Autista? É possível? Quais estratégias podem ser adotadas? O artigo apresenta diversas ações práticas, ilustradas por um caso de sucesso.
Por Marise Bartolozzi Bastos © Instituto Rodrigo Mendes
Um dos principais problemas enfrentados na escolarização de pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) é o fato de que muitas delas experimentam dificuldade para estabelecer uma relação socializada com os outros. Nesse sentido, mais do que a chance de aprender, a escola oferece a crianças com autismo uma certidão de pertinência ao proporcionar-lhes o lugar de “estudantes”. Com a inclusão, aposta-se no poder das diferentes produções discursivas presentes no ambiente escolar de delinear, assegurar e sustentar o lugar social de aluno.
Contudo, sabemos como é penoso para os educadores terem estudantes imunes ao estabelecimento do laço e do contato social. Alunos que não têm curiosidade pelo conhecimento e que não entram no regime das relações e trocas sociais participam de maneira atípica das atividades. Não que todos os estudantes com esse diagnóstico sejam necessariamente assim. Mas quando o transtorno vem acompanhado dessas características, a angústia do professor é quase inevitável. Mas por que é assim? E como reverter tal situação considerando que a inclusão escolar enquanto direito é fato indiscutível? A resposta está em questionar e discutir as crenças pedagógicas vigentes.
O trabalho de escolarização das crianças com autismo exigirá dos professores uma reflexão sobre os processos usuais de ensino e aprendizagem, bem como um olhar diferente. Um olhar que leve em conta um estudante que não está em posição de curiosidade, mas que aprende de maneira específica e pouco convencional. Para os educadores, isso se apresenta como um enigma e um desafio: afinal, como ensinar a quem não demanda o saber?
Mudança de perspectiva para incluir
As perguntas mais frequentes de professores de alunos com TEA costumam ser: “como trabalhar se não somos especializados no transtorno?”, “como alfabetizar uma criança que não se interessa pela leitura e pela escrita e só tem interesse em matemática?” ou “como ensinar o conteúdo a um estudante que não me dirige a palavra nem o olhar?”. Essas inquietações têm, como pano de fundo, o discurso pedagógico tradicional que atrela o educar às noções de desenvolvimento oriundas do campo da psicologia. Essa pedagogia vigente preconiza como tarefa da educação escolar implementar esses processos, sobretudo o cognitivo.
É a ênfase a esses aspectos que muitas vezes inviabiliza que o docente tome a criança com autismo como aluno de fato. Quando um estudante não fala, não responde às solicitações, não brinca com os demais e apresenta um grafismo rudimentar, o professor o vê como uma pessoa com atrasos no desenvolvimento. E que, portanto, está aquém dos processos de alfabetização e letramento. O educador, então, não se sente habilitado para exercer sua tarefa e, muitas vezes, supõe que esse aluno só poderá dar conta de atividades da educação infantil.
Nesse ponto, é preciso questionar a pedagogia tradicional de modo a permitir que a escola repense suas práticas fora de uma perspectiva desenvolvimentista. Trata-se de possibilitar que ela tome essa criança como estudante, não exclusivamente pela ótica do desenvolvimento cognitivo, mas incluindo também o sujeito psíquico, dimensão que não coincide com o desenvolvimento biológico. Só assim novas formas de aprender e ensinar serão viabilizadas.
A inclusão de alunos com TEA requer, portanto, transformações importantes, sobretudo na maneira como os educadores veem esses alunos, entendem o próprio papel e concebem a relação com o saber e o conhecimento.
Escrito inconsciente e escrita alfabética
O psicanalista Gérard Pommier, em seu livro “Nacimiento y renacimiento de la escritura Site externo”, assinala que a aprendizagem da escrita está para além do domínio de uma técnica de alfabetização ensinada na escola. Segundo o autor, se uma criança ainda não pode escrever, não é por falta de maturidade, prontidão ou por problemas em seu desenvolvimento cognitivo, mas porque há um caminho subjetivo a ser percorrido antes da construção da escrita. Mas é importante considerar que, a partir das formulações de Freud e Lacan, os psicanalistas questionam a ideia de que a fala antecede a escrita. E, portanto, também de que a escrita surgiu para representá-la. Segundo eles, é a fala que passa a ser uma espécie de representação do escrito inconsciente.
Assim, considerando a capacidade de maleabilidade das estruturas psíquicas própria da infância, ou seja, de haver mudanças importantes nesta fase da vida, no caso do autismo, a relação do sujeito com a linguagem pode ser reordenada pela via da escrita, uma vez que o escrito inconsciente é o suporte para a escrita alfabética. Poderíamos dizer que a escrita alfabética pode servir para o autista como uma nova possibilidade de estruturação psíquica.
No movimento gradual de aquisição da escrita, pode ocorrer uma operação de linguagem de dupla mão: uma escrita será construída, mas também um sujeito se construirá como efeito do desenvolvimento da escrita. Ao mesmo tempo que se constrói uma escrita, ela o constrói, em um jogo de reorganização do campo simbólico ou da linguagem.
Educação terapêutica
Podemos dizer, então, que, para a psicanálise, a aquisição da escrita é uma forma de tratar as crianças com autismo. Ao sujeitar-se ao funcionamento da estrutura da língua e curvar-se ao ordenamento do código da linguagem, a escrita alfabética oferece a elas uma nova chance de ordenar sua relação com o outro ou com a linguagem.
Ou seja, o trabalho de alfabetização dessas crianças no âmbito escolar é uma forma de ajudá-las a construir modos mais flexíveis de referência à linguagem, abrindo possibilidades de laço social pela via da escrita. Daí o termo “Educação terapêutica”: para esses alunos, estar na escola cumpre uma dupla função – ambas com valor terapêutico: por um lado, promove a circulação e o laço social e, por outro, o reordenamento do campo simbólico.
Nesse sentido, o educador não precisa ser um especialista em transtornos ou tratamentos. Ele precisa tratar de seu aluno, entendendo o tratar como o ato de cuidar dessa criança para ajudá-la a encontrar modos de dizer sobre si.
Alfabetização de crianças com TEA – O Caso Roberto
Aos 10 anos, Roberto chegou ao Grupo da Escrita. Ele cursava o 4º ano e seus professores sentiam dificuldades para abordá-lo pedagogicamente. Era um menino muito quieto e arredio. Em sala de aula, ficava em silêncio, observando os colegas e fazendo rabiscos. No grupo, passava o tempo todo sentado, não interagia e não solicitava nenhum dos materiais sobre a mesa (papéis, lápis coloridos, canetas, livros, revistas, gibis e alguns jogos).
Nos primeiros encontros, apesar dos convites feitos pelos coordenadores do grupo, o garoto se restringia a observar. Suas primeiras produções foram: